Em carta aberta dirigida à Ministra da Saúde, assinada por 416 dos 1061 Médicos Internos de Medicina Interna de todo o país, e que se reproduz na íntegra, os signatários alertam-na para as razões para o seu mal-estar e insatisfação, e comunicam-lhe que irão apresentar as competentes escusas de responsabilidade e indisponibilidade para serem ultrapassados os limites legais de trabalho suplementar:
Exma. Senhora Ministra da Saúde Doutora Marta Temido,
A Medicina Interna (MI) é a especialidade médica sobre a qual assentam as estruturas hospitalares e os Serviços de Urgência de todo o país. Não é demais lembrar que a resposta que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) teve, e que continua a ter, perante a situação de pandemia COVID-19 apenas foi possível por causa do enorme esforço de especialidades como a MI. Os médicos internos de MI fazem parte dos serviços e das equipas de urgência e, sem a sua presença, as escalas não se encontrariam regularmente preenchidas.
Temos assistido a situações como as do Hospital São Francisco Xavier em que as escalas de urgência de MI ficam repetidamente fragilizadas e reduzidas a internos de MI. Para a Ordem dos Médicos, a decisão do conselho de administração daquele hospital de não cumprir as equipas-tipo e escalas adequadas às necessidades dos doentes significa estar de "forma involuntária a diminuir a segurança e qualidade clínica dos serviços prestados, a aumentar os níveis de burnout e sofrimento ético dos médicos, e a prejudicar de forma substantiva a formação médica".
Também noutros hospitais do país se multiplica o recurso a internos de MI, muitas vezes para preencher turnos de especialista das escalas de urgência, tendo esta prática sido tornada um hábito, em prejuízo da sua formação, nomeadamente no que respeita à restante atividade assistencial, como consulta e internamento. Assim, pouco tempo sobra aos internos de MI para cumprir os números mínimos exigidos nos curricula de MI relativamente ao número de consultas, treino das inúmeras técnicas exigidas à especialidade, tempo para actividade como publicação de artigos e trabalho de investigação e/ou participação em ensaios clínicos. Isto resulta numa formação deficiente, sufocada pelas exigências dos serviços de urgências e numa desmotivação crescente.
O Colégio de Especialidade de Medicina Interna (CEMI) veio recentemente esclarecer que "a utilização sistemática de uma equipa composta pela combinação de um interno de formação específica do quinto ano com um especialista não cumpre os requisitos definidos pelo Colégio de Especialidade.” O CEMI reforça ainda que a utilização de um interno do quinto ano para suprir necessidades de recursos humanos deve ser admitida apenas em situações "muito particulares e excepcionais," sempre sob supervisão de um internista, "e não para resolver problemas de escalas médicas há muito potencialmente antecipáveis.” A sistematização desta prática resultou já na perda de idoneidade formativa de MI em alguns serviços de urgência do país.
As responsabilidades dos médicos internos de MI incluem atender utentes que se dirigem ao Serviço de Urgência por iniciativa própria ou referenciados por outros serviços ou centros de saúde. Em paralelo, asseguram escalas de urgência interna/permanência, realizam consulta externa, atividade assistencial em internamento e outras atividades como em Hospital de Dia, onde realizam múltiplas técnicas.
Para que toda esta atividade seja realizada, efetuam inúmeras horas extra, tanto no Serviço de Urgência (remuneradas como horas suplementares), como na enfermaria, consulta e hospital de dia (não remuneradas e não contabilizadas), resultando isto muitas vezes também em prejuízo da sua própria vida pessoal e familiar.
Além da actividade clínica já mencionada, é ainda exigido aos internos de MI a obrigatoriedade de formação contínua através da realização de cursos, congressos, projetos de investigação e formações pós-graduadas nacionais e internacionais, actividades estas que são realizadas necessariamente em horário pós-laboral, não contempladas nas 40 horas semanais contratualizadas, ou em regime de comissão gratuita de serviço, não estando, portanto, previsto apoio monetário ou horário para investigação/formação para os internos da especialidade.
Os médicos internos auferem uma remuneração líquida entre 8,02€/h e 8,35€/h (entre 1283 e 1336€/mês para um contrato de 40 horas semanais) durante os primeiros cinco anos em que trabalham para o SNS, valores estes que se encontram estagnados há vários anos, tal como acontece com os salários de toda a carreira médica. Esta situação reflete uma clara falta de reconhecimento pelas funções que um médico exerce tendo em conta o grau de exigência inerente à profissão e ao desgaste que a mesma implica.
Esta espiral de insatisfação vai-se agravando todos os dias e é comum a várias especialidades médicas. O sentimento de exaustão e incompreensão a que os internos de todo o país estão sujeitos vai-se alastrando. Esta pressão que todos sentimos resulta de não haver especialistas suficientes nos Serviços de Urgência, fazendo com que o caminho mais fácil seja a "utilização” abusiva dos internos para colmatar falhas nas escalas, resultando na multiplicação de horas extraordinárias muito para além das 150 horas anuais obrigatórias.
Face ao exposto, e apesar de no recente e aprovado Decreto-Lei n.º 50-A/2022, de 25 de julho, os internos serem contemplados, consideramos que a remuneração proposta apenas para o trabalho suplementar não se coaduna com o nível de diferenciação e responsabilidade que o médico interno detém, como anteriormente referido. Impõe-se, portanto, a reforma das carreiras médicas, uma vez que o recurso ao trabalho suplementar é uma constante nos serviços de saúde públicos, o que manifestamente diminui a qualidade dos cuidados prestados.
Finalmente, tendo em conta as exigências laborais, consideramos que a formação dos médicos internos se encontra comprometida, uma vez que estes constantemente asseguram as escalas de urgência, desdobrando-se em turnos que deveriam ser garantidos por especialistas, em claro incumprimento dos critérios de idoneidade formativa de MI aprovados em plenário do Conselho Nacional de 13 de janeiro de 2020.
Por considerarmos que as medidas até hoje aprovadas são insuficientes para a resolução das dificuldades sentidas diariamente na prestação de cuidados, vimos por este meio e de modo coletivo informar que:
- Entregaremos a nível individual e junto das respetivas administrações hospitalares a minuta de recusa de realização de mais de 150 horas extra/ano em conformidade com o disposto no n.o 2 do art. 38.º do Regulamento do Internato Médico, aprovado pela Portaria n.º 79/2018, de 16 de março e/ou;
- Entregaremos, também, minutas de escusa de responsabilidade sempre que estivermos destacados para trabalho em urgência e as escalas de urgência não estiverem de acordo com Regulamento n.º 915/2021 de 15.10.2021.
Desta forma, exigimos melhores condições formativas e de trabalho, uma remuneração que reflita a nossa diferenciação, o cumprimento dos tectos máximos de horas extraordinárias e o cumprimento dos mínimos assistenciais nas equipas de urgência, de forma a poder dar resposta ao grau de exigência que nos é exigido, garantindo a segurança dos nossos utentes.
Pedimos a vossa compreensão e apoio na nossa ação por um melhor reconhecimento do nosso trabalho.
Cumprimentos,
Médicos de Formação Específica em Medicina Interna
16 de Agosto de 2022