DN, 26 abril 2020, Catarina Carvalho
Foi com ironia que viu o regresso à ideia de que o Serviço Nacional de Saúde é essencial para Portugal?Não sei se é ironia, mas é interessante perceber como a COVID-19 alterou as perceções que sobre o sistema de saúde. E é interessante verificar como o sistema consegue estar a dar esta resposta. Ao contrário de outros países - e conseguimos fazer essa comparação - conseguimos perceber a vantagem de ter um serviço de saúde universal. Há outros países onde parte significativa da população não tem acesso a serviços de saúde. Portugal acaba por ser bom exemplo, na prestação de cuidados a imigrantes, refugiados. O SNS tem muitas vantagens e os portugueses acabam por se aperceber disso na altura de maior crise.
Vai de uma vez por todas perceber-se que um SNS público faz parte de uma espécie de soberania?A memória é curta - as mesmas pessoas que criticavam o SNS e os profissionais de saúde, são as mesmas que batem palmas e que se sentem muito emocionadas com a resposta dos profissionais de saúde. Não esquecendo que vamos atravessar uma grave situação de crise económica. Costumo dar o exemplo da crise de 2008. No mesmo dia que há a falência do Lehman Brothers em Talin é assinada uma carta entre o Banco Mundial e os vários países da OMS na Europa e que diz que o investimento em saúde é investimento em crescimento económico. A partir da crise financeira, que começa naquele dia. a grande maioria dos países europeus faz uma redução nos seus orçamentos na saúde. A prova dos nove será perceber se essa perceção da importância do SNS se mantém. E não estou tão certo disso, porque o comportamento dos agentes é muito mais oportunístico do que estratégico. Se houvesse uma visão estratégica conseguíamos perceber isso.
A falta de recursos que o SNS sentiu deveu-se à situação depauperada em que já estava?A grande maioria dos países subestimou a epidemia. Ate porque já tínhamos atravessado outras, dadas como assustadoras e acabaram por não ser. Há também um problema grave de capacidade de produção destes materiais - dos vários países. Portugal não foi exceção nisso.
Ainda há falta de materiais?Continua a sentir-se. Os hospitais continuam dependentes de doações de entidades individuais. Até temos equipamentos, mas não há protetores de sapatos, ou uma viseira, há falhas pontuais. A situação é melhor do que há um mês.
Ou seja, há um certo risco se houver uma abertura à normalidade como se anuncia...Há vários requisitos que devem ser cumpridos para isso. Um deles é a existência de equipamentos protetores não só para profissionais de saúde mas para os doentes não-COVID que vão passar a circular nos hospitais. Testes para profissionais e doentes. E na prática mais recursos humanos.
Já disse que a maior vítima da última anterior crise económica e financeira foi o SNS...Foi sempre por duas vias. A da procura: vamos ter muito mais pressão. A outra é a redução do investimento.
Acha que vai repetir-se o aperto ao SNS quando a crise sanitária passar? Ou nos habituarmos a ela?O SNS não recuperou da última crise, quer em recursos humanos, quer em investimento. Chega a esta crise muito depauperado e com graves problemas estruturais. Se reduzirmos o investimento no SNS vamos agravar os problemas. Por exemplo, como é que a partir de outubro vamos vier com a COVID-19 e a epidemia habitual da gripe? Com o drama que já é a gripe sazonal em Portugal... A tentação de cortes no SNS vai ser imensa. Foi preciso haver uma crise destas para o ministério das finanças perceber que tinha de dar autonomia às instituições hospitalares. Para contratar, por exemplo. Mesmo assim foi só quatro meses! Porque houve uma vontade política para resolver os problemas. Mas não tenhamos dúvidas: as mesmas pessoas que estão agora a aplaudir o SNS são as que vão pedir redução de salários da administração pública.
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Diário de Notícias.