No meu serviço há uma divisão entre duas equipas, e segue esse modelo que tende a minimizar os contactos entre médicos dessas duas equipas e assim o risco de contágio cruzado. Portanto, numa semana fazem-se 80 horas e noutra zero. Julgo que é um modelo adoptado por muitos serviços, de resto. Dadas as especificidades da especialidade, existe também uma segunda linha de médicos em casa que podem ser chamados na eventualidade de alguém adoecer ou outra razão qualquer.
No meu caso, e como foi necessário deslocar anestesistas para apoio aos cuidados intensivos, fui voluntariamente para lá desde o início, há uma semana. Dentro em breve serão necessários muitos mais, e como a anestesiologia é a especialidade mais próxima do intensivismo, é aqui que muita gente irá passar os próximos tempos. Na UCIP, as equipas também estão divididas e dos 16 elementos iniciais, há 8 em casos Covid e 8 em intensivismo "normal", com troca prevista para o fim do mês.
Os que estão em Covid fazem 48 horas/semana - dia, noite, descanso, nesta sequência, turnos de 12h, nunca 24h. E ainda assim pode ser necessário prolongar, pois desde o início uma colega deu positiva e outra ficou em casa após apresentar febre, mas deu negativo. Os que estão do lado "normal" fazem 60 horas, pois acresce um turno de emergência interna e externa.
Em relação ao dedómetro, o director está simplesmente a borrifar-se... Há serviços que têm inclusive indicações por parte das suas direcções para ignorarem o registo, eles vão validar todo o horário. Mas a ideia é que todas as horas contem para pagamento; ninguém está neste momento a contabilizar se ficarão folgas e descansos compensatórios por gozar.
Não creio que neste momento se deva discutir horários e outros preceitos legais que tanto prezamos e pelos quais tanto nos batemos. Há assuntos mais preocupantes, como no caso de um casal de médicos, como o meu, em que há crianças de que ninguém pode cuidar, a presença de um deles em casa deve estar garantida. Os nossos filhos não têm menos direito que os dos outros a se protegerem da epidemia.
Dentro do razoável, todos os médicos com formação afim necessária ao combate a esta epidemia devem estar disponíveis para evitar uma catástrofe potencial.
Devemos pugnar sempre pela existência de protecção, mas nesta altura também devemos mostrar de que fibra somos feitos e o que é um verdadeiro MÉDICO.
Teremos tempo num futuro próximo de avaliar o que se passou, quem somos e o que fomos nesta crise. E lembrar ao Poder que não nos podem exigir tudo e dar nada em troca, deturpar o nosso nome, ignorar que somos ameaçados e agredidos no local de trabalho, que não temos um salário digno da altura da nossa missão.
Mas mais tarde. Por agora vamos todos ficar unidos e mostrar aos portugueses que há, entre eles, uns profissionais altamente diferenciados, os mais diferenciados deles todos, que não ficam em casa a dar entrevistas à frente de bibliotecas mais ou menos decorativas com soluções e reflexões para o mundo inteiro.