Lembra-se de que aos seis anos já queria ser médica. Muito por culpa do pai, doente crónico desde sempre. "Cuidar do outro foi sempre uma forma de estar”, resume Ana Monsanto, lisboeta de 58 anos. Por isso, quando foi para a faculdade, a medicina foi a única opção. Licenciou-se na Faculdade de Ciências Médicas, mudou-se para Ourique, vila do distrito de Beja, para exercer medicina geral e familiar, e por lá ficou. Há mais de 30 anos.
Enérgica e dedicada, foi acumulando responsabilidades, até se tornar quase omnipresente. "Passava tudo pelas minhas mãos. Tinha dias em que observava, entre consultas, receitas e exames complementares de diagnóstico, 80 pessoas. Nestas unidades, as pessoas estão muito próximas de nós e eu achava que não podia dizer que não. Tinha medo que a pessoa a quem eu fosse dizer que não fosse aquela que precisava mais de mim.”
A aversão às negas saiu-lhe cara. Em maio de 2017, um cansaço extremo começou a apoderar-se dela. Ao ponto de pedir para lhe reduzirem o número de consultas. A partir daí, foi sempre a piorar. Aos poucos, a habitual empatia que tinha com os doentes esfumou-se. Até chegar o dia em que "já não conseguia olhar para a cara dos pacientes”. E em que ainda não tinha entrado no Centro de Saúde de Ourique e já só pensava em sair.
Fora do trabalho, o panorama não era mais risonho. Não dormia, não comia, doíam-lhe os músculos e a cabeça. Andava apática. Triste como a noite. Tinha dificuldades em concentrar-se. Ler uma simples notícia do princípio ao fim passou a ser impossível. Só lhe restava comunicar à chefe que não estava em condições de continuar a exercer. Assim fez. Seguiu-se uma ida à psicóloga. Outra ao psiquiatra. Ambos concordaram que estava em burnout. (...)
É por isso que o caso de Ana não é só mais um caso. É um retrato extremo de uma realidade que prolifera em hospitais e centros de saúde de norte a sul. É uma de muitos profissionais pressionados pela sobrecarga horária e pela desmesurada proporção entre o número de doentes e de médicos. É o rosto de uma classe em que o bullying vai ganhando forma (sobretudo no internato) e as agressões dos pacientes não param de aumentar. É um grito de alma que mostra que o ofício que muitos pais se habituaram a desejar para os filhos pode ter um lado perverso. Pode ser, no limite, uma profissão de risco. (...)
Segundo o estudo "Burnout na classe médica”, conduzido pela Ordem dos Médicos e pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em 2016, 66% dos médicos em Portugal apresentavam um índice elevado de exaustão emocional, um dos indicadores do estado de burnout. (...)
Falta de condiçõesEntre outras questões conjunturais, Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, critica à falta de condições físicas (que ainda recentemente levou à demissão de 52 médicos com cargos de chefia no Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho) e à "sobrecarga grande nas consultas externas”. "Há médicos que têm vários doentes para a mesma hora e alguns que, em quatro horas, chegam a ver 25 doentes. Muitas vezes alargam os horários de trabalho para fazer face às necessidades destes. (...)
"Nunca senti uma insatisfação generalizada tão grande. Até já há médicos, em início de carreira, que estão a abandonar a profissão”
Miguel Guimarães, Bastonário da Ordem dos Médicos
Miguel Guimarães lamenta a "suborçamentação crónica” e uma tendência de "desinvestimento no setor da saúde” que se acentuou desde os tempos da troika. Razões de sobra para o bastonário da Ordem dos Médicos traçar um retrato negro. "Nunca senti uma insatisfação generalizada tão grande”, alerta, antes de avisar para um cenário ainda mais preocupante: "Há muitos médicos a abandonar o Serviço Nacional de Saúde. Uns vão para o setor privado, outros emigram. E até já há muitos médicos, em início de carreira, que estão a abandonar a profissão. Tenho tido conhecimento de alguns casos.” (...)